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Natureza humana - Flávio Paranhos

Natureza humana - Flávio Paranhos

15/05/2014

“Cada vez que acontece algo assim, bárbaro, instala-se a impressão geral de que o mundo está ficando mais violento”

“Na noite de 13 de outubro de 1761, Jean Calas, comerciante de tecidos na Rue de Filatiers, jantara com a família em seu modesto apartamento no primeiro andar, em cima da loja. Recebiam o jovem Gaubert Lavaisse, de uma família protestante de Toulouse, então fazendo estágio com um armador em Bordeaux; vinha dizer adeus antes de partir. À sobre mesa o filho mais velho, Marc-Antoine Calas, levanta-se e desce; vai, pensam, dar uma volta na cidade (...). Por volta das 21h30 Gaubert Lavaisse se despede. O irmão caçula o acompanha (...). Tendo chegado ao corredor do térreo, avistam na loja o corpo de Marc-Antoine morto, o pescoço tem as marcas de uma corda. Ante os gritos da família, os vizinhos saem à rua. As pessoas do bairro se juntam. Um boato se espalha na mesma hora: Marc-Antoine ia converter-se, como fizera alguns anos antes seu irmão mais novo. Para impedi-lo, os Calas, ajudados por Gaubert Lavaisse, agente de um complô calvinista, o assassinaram. A versão da rua espalha-se convincente. Toda a família Calas é encarcerada na mesma noite. (...) Em 9 de março o tribunal criminal de Toulouse condena à morte Jean Calas. No dia seguinte, o condenado é, perante uma multidão reunida, executado pelo suplício da roda.” (Introdução de René Pomeau ao Tratado sobre a Tolerância, de Voltaire, ed. Martins Fontes).

O episódio narrado acima serviu a Voltaire ao propósito de ponderar acerca da intolerância e fanatismo religiosos, mas nos servirá para algo mais básico – a natureza humana. Se a alguém ocorreu se lembrar do linchamento da mulher vítima de um boato no Facebook, é exatamente onde quero chegar.

Cada vez que acontece algo assim, bárbaro, instala-se a impressão geral de que o mundo (ou o Brasil) está ficando mais violento. Não está. Boatos, linchamentos, fanatismos, privadas lançadas, pedradas desgraçadamente sempre fizeram parte do convívio humano. E por mais intuitivo que pareça (sempre desconfie do que é intuitivo), não estão aumentando, mas, sim, diminuindo. O filósofo professor do MIT, Steven Pinker, debruçou-se sobre a estatística da evolução histórica da violência e descobriu que esta de fato vinha se reduzindo (em The Better Angels of our Nature, Penguin, 2011).

Mas não pense o leitor que estou sendo aqui otimista ou positivo e que não me sensibilize com tais barbaridades. Pois é justamente o contrário. Não boto absolutamente nenhuma fé no ser humano. Que boatos sejam capazes de fazer pessoas “normais” se juntarem e matarem alguém, que o fato de torcer para um time contrário é suficiente para se atirar pedras, privadas, que pensar diferente seja motivo para mandar prender, que acreditar num outro deus ou deuses empurre pessoas aos leões ou à morte por uma bomba, diz muito a respeito da natureza humana. Há alguns mil anos, em 1761 ou hoje. Não tem conserto.


Flávio Paranhos é médico  e escritor

Publicado em O Popular

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