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Acerca de uma falácia - Flávio Paranhos

Acerca de uma falácia - Flávio Paranhos

03/03/2012

 

“Gritarão eles que, se a liberdade for abolida aqui ou acolá, será abolida em todo lugar e para sempre. Nada mais falacioso”

A recente polêmica sobre se os perfis de Twitter que avisam onde estão as blitz da Balada Responsável é um ótimo instrumento para se filosofar sobre ética.

Uma das propostas mais simples de divisão da ética normativa (a que se propõe a dizer o que é certo e o que é errado) é entre consequencialista e não consequencialista. A primeira leva em consideração as consequências de um ato e a segunda, não. A segunda, portanto, é a ética dos imperativos categóricos de valor universal. Ou seja, para ela, algo é SEMPRE errado ou SEMPRE certo, a despeito das consequências que acarretar. O representante máximo dessa ética é Kant, com seus imperativos categóricos universais.

Já a ética consequencialista leva em consideração as consequências de um ato para classificá-lo como certo (moralmente desejável) ou errado (digno de censura e/ou punição). Não há, portanto, algo que seja SEMPRE certo ou errado. Dependerá das consequências. Os representantes clássicos são os utilitaristas.

Embora a ética não consequencialista seja muito bonitinha, na prática ela é indefensável. Um exemplo clássico disso é a famosa polêmica envolvendo Kant e Benjamin Constant sobre mentir. O imperativo categórico kantiano “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” não permite brechas para se mentir. Mentir é errado porque não podemos desejar que se torne uma lei universal (seria o caos!). Entretanto, logo se vê a artificialidade de tal regra. Quer dizer então que se você mantiver escondida uma família de judeus em sua casa e os nazistas chegarem e perguntarem se há judeus ali, você... diz a verdade?

O que você fez, ao mentir pros nazistas? Cálculos. Pensou: se eu ferir um imperativo categórico pretensamente universal, e mentir, salvarei uma família da morte. Se eu respeitar a porcaria desse imperativo, sou cúmplice dos nazistas.

Pois bem. Liberdade de expressão costuma vir carregado de um significado ao mesmo tempo político, ideológico e ético. No caso do ético, com evidente pretensão de imperativo categórico com valor universal. Sempre válido e correto (moralmente), a despeito das consequências. Facilmente se vê, entretanto, que, assim como “não mentir”, ou, pra todos os efeitos, qualquer outra “virtude moral”, será de fato uma virtude a depender das consequências que acarretar.

Não é preciso ser um gênio para imaginar que sites que avisam onde estão as blitze de fiscalização de bêbados no trânsito garantem a presença de... bêbados no trânsito. O que, consequentemente, aumenta o risco de mortes causadas por esses não cidadãos. Equivale a entregar a família de judeus aos nazistas. Nada mais estúpido.

Nesse momento, os defensores acalorados da “liberdade de expressão” denunciam a si próprios como imaginando-a “universal”. Gritarão eles que, se a liberdade for abolida aqui ou acolá, será abolida em todo lugar e para sempre. Nada mais falacioso. A ética consequencialista não nega as virtudes morais, apenas submete-as, caso por caso, ao escrutínio das consequências.

A propósito, fui abordado pela Balada Responsável. Foram supereducados. E, claro, deu zero no bafômetro, pois com beber e dirigir sou kantiano – nunca.

Flávio Paranhos é médico e escritor - frl-paranhos@uol.com.br
Publicado em O Popular

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