Mundo Mulher

Presença de espírito - Flávio R. L. Paranhos

Presença de espírito -  Flávio R. L. Paranhos

01/06/2014

Perguntaram ao paciente se ele queria apoio religioso, que o hospital disponibilizava por meio de um capelão. Agradeceu, mas não, pois era ateu. A essa altura todos sabiam, ele incluído, que seu caso era terminal. Morreria ali, daí a alguns dias. Já manifestara, antecipadamente, não querer que esticassem seu processo de morte futilmente. Não queria aparelhos, queria dignidade. Chegou o dia, tudo indicava. Solicitou a presença do capelão. Diante da surpresa dos que cuidavam dele, justificou-se:


– É que quero dizer ao capelão que ficarei sabendo antes dele.
Essa é uma história com “h” mesmo. Um dos muitos casos impressionantes compartilhados por bioeticistas presentes à 10ª. Conferência Internacional de Bioética Clínica, em Paris. Invejo a tranquilidade e, mesmo, presença de espírito (embora “espírito” aqui talvez seja impertinente) desse paciente, presença de espírito essa de deixar Voltaire envergonhado.
Por sinal, Voltaire está em cartaz no Teatro de Bolso da Montparnasse, numa disputa com Rousseau, uma ideia original de Jean-François Prévand. Briga filosófica com direito a argumentos de maior peso, como vasilhas e mobília de um em direção ao outro. Já o Odéon (do 17º “arrondissement”, não o próximo à Escola de Medicina) oferece uma versão moderna de Tartufo. Confesso que me escapa o porquê de uma estória tão bobinha permanecer clássica, daí a boa ideia de a “modernizar”. Infelizmente, ficou só no figurino. Um senhor se levantou bravo quando faltavam cinco minutos. Quase o acompanhei.


E por falar na Escola de Medicina, refiro-me à célebre Paris-Descartes, que é onde aconteceu o congresso. Brasileiros sentem-se em casa aqui. Grande e bonita por fora, uma esculhambação por dentro. Salas de aula e banheiros mal-cuidados, avisos de “Atenção a seus pertences pessoais”. Nada do espírito asséptico das universidades americanas. Mas, pensando bem, é até mais charmoso.


Retrospectiva de Lucio Fontana no MAM, até agosto. Ainda estou decidindo se os 11 euros foram bem empregados. A coleção permanente, gratuita, tem muita porcaria, mas tem a sala Matisse e, sobretudo, o gênio criador do casal Delaunay. As fendas de Fontana ficam pálidas diante das cores de Sonia e Robert. Remetem aos riscos de Lee Ufan. As esculturas salvam.
Tristão e Isolda na Ópera Bastille até maio. Confesso que dormi no primeiro ato. O segundo e terceiro foram honestos. O vídeo deu um suporte questionável.


Lago dos Cisnes no Palais des Congrès, até maio. Alegadamente uma produção do “Bolshoi de Minsk”. Sei lá o que isso significa no mundo das companhias de balé, o que sei é que foi provavelmente a apresentação mais medíocre que já tive a infelicidade de presenciar. Os sopros de Tchaikovsky pedem potência. Parecia até uma orquestra formada por vários woody allens – totalmente sem fôlego. Sem falar no tombo de uma das bailarinas logo no início. Que estava com a saia aberta. Mas, tudo bem, bailarinas caem. Não foi esse o problema. Talvez eu estivesse de mau humor por conta de duas adolescentes patetinhas que conversaram durante todo o primeiro ato.


Comida? Sim, muita. Pra variar, voltarei rolando. Depois conto.
Publicado em O Popular
Flávio Paranhos é médico e escritor, prof. de medicina na PUC Goiás Foi palestrante no 10ª. Conferência Internacional de Bioética Clínica, em Paris

Mundo Mulher
Mundo Mulher
Mundo Mulher
box_veja