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Carta a Um Amigo - Filhos

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Carta a um amigo.


Caro amigo:

Em conversa telefônica, trocamos algumas considerações sobre a geração dos nossos filhos. Você me dizia que nós não tivemos, com os nossos pais, o diálogo que oferecemos aos rebentos. Disse que os jovens de hoje não são reprimidos como fomos; são mais e melhor orientados para enfrentar o mundo; como podem eles cometer tantos desatinos, com drogar-se, engravidar precocemente, largar os estudos?

Concordo apenas em parte com sua argumentação. Vamos às discordâncias.

Certa vez conversei com um amigo sobre as idéias do meu pai. Eu disse que suas opiniões eram firmes, mas muito fechadas à discussão. O meu interlocutor ouviu tudo calado, com ar pensativo. Quando acabei o relato (ou desabafo), ele ponderou:

— Tudo bem. Mas eles — o seu pai, o meu e tantos outros — deixaram para nós um eixo claro de convicções. Podemos concordar ou não. Se concordamos com os velhos, temos um modelo de ação; se discordamos, temos um referencial a que combater. Nós, modernos, somos muito relativistas, tudo compreendemos, mas não temos certeza de nada. Não vamos deixar uma base sólida. De que ponto partirão nossos filhos?

Há um outro aspecto que complementa o comentário do meu amigo. A nossa geração soube elaborar a repressão. Em cima desse fenômeno lemos ou estudamos a psicanálise, o marxismo, as religiões orientais e tantos outros conjuntos de conceitos. Através de cada uma dessas filosofias tentamos explicar o mundo. O modo de nos alimentarmos, as roupas, a música!, até mesmo o jeito de viver com o sexo oposto era condicionado por um vasto desenho de idéias.

É verdade que experimentamos fumo y otras cositas, sim; mas essa prática estava a serviço de "abrir as portas da percepção", como dizíamos, afim de construir a nova sociedade meio comunista meio hippie, que inocentes éramos, como foi bom até o sonho acabar. Hoje a molecada se chapa em nome da pura sensação, que é má conselheira. Você deve se lembrar do filme "O Império dos Sentidos", do Oshima. Ali se dá algo semelhante, mas ligado ao sexo. O estímulo corporal ligava-se tão somente ao prazer, sem constituir um sentido, futuro ou projeto de vida. O final é a morte, pois a pura sensação só pode pedir mais sensação — até o único fim possível.

Conversamos bastante com nossos filhos, sem dúvida. Mas não estamos legando a eles as ferramentas para construir uma visão ampla de mundo e, a partir daí, um projeto consistente de vida. Não é nossa culpa individual. A pós-modernidade, segundo um filósofo francês, caracteriza-se justamente pela falência das utopias. A religião caiu de moda, o muro arrasou o marxismo, a psicanálise anda restrita a um pequeno grupo de praticantes. A escola secundária prepara para o vestibular, dirige-se ao objetivo imediato; o Saber que se dane. Grandes filosofias? Para quê? Demora muito ler Hegel, Kant, Heidegger, esses caras chatos, e ninguém entra na faculdade desse jeito. A velocidade da época pede o video-game, a fórmula 1, o computador, o teste, o thriller. Você reviu o 2001 - Uma Odisséia no Espaço há pouco tempo? Eu vi. Parecia tão lento!

Pouco se lê, na pós-modernidade. Os ícones visuais substituíram as imagens que a mente formava. Na arquitetura alucinante do video-game há lugar para algumas estórias, mas não há repouso para a história. É muito mais atraente — porque imediato — do que um livro. Não é necessário pensar, está tudo ali: a cara do herói, o cenário da aventura, as armas do bandido. A imaginação foi banida da epopéia, a filosofia é um darwinismo social não-elaborado. E você já viu alguém elaborar uma obra filosófica numa tela de video-game?

Estou escrevendo esta carta num computador. Se eu errar, teclo backspace e deleto a letra. Novas palavras, novo jeito: diminuiu a responsabilidade para com os erros. Não preciso apagar ou borrar o papel com estranhos compostos químicos. Você deve se lembrar de quando escrevíamos com caneta-tinteiro e apagávamos o traço com cândida. Como era complicado trocar uma letra!

Vou lhe contar um caso interessante. Certa vez alguém se admirou com a impressionante segurança com que o Nelson Gonçalves gravava seus discos. O homem nunca errava. Convidado a explicar essa incrível precisão, expôs as coisas de maneira muito simples. Na época em que ele começou a gravar, o processo de fabrico da matriz era bastante primitivo. Precisava-se de uma cera especial, vinda de São Paulo, que demorava alguns dias para chegar ao Rio. Se ele errasse, o trabalho (e o recebimento da grana) ficariam irremediavelmente prejudicados. Resultado: aprendeu a não errar. Veja a diferença entre essa situação e a de hoje. Quase não há limites em refazer uma gravação na mesma trilha digital, além do custo das horas de estúdio.

Não estou sendo saudosista. Trabalho nesta máquina de bits e bytes, o que me facilita imensamente a vida. As tarefas mecânicas e repetitivas ficaram mais leves e muito mais rápidas. Mas isso traz a nós, e muito mais aos nossos jovens, uma irresponsabilidade para com os erros e uma impaciência para as tarefas que exigem tempo e reflexão. Essa é a concepção de uma sociedade onde tudo pode ser rapidamente substituído — onde tudo é descartável.

Quando você fala sobre a nossa abertura em direção aos filhos, talvez esteja esquecendo a estrutura onde as palavras — e os atos — dos pais vão pousar. O atos: esta outra forma de comunicação, o exemplo mudo do cotidiano. Segundo alguns, mais importante que a conversa; é aí o lugar onde os conceitos se encontram com o real e sofrem a prova da verdade. Pois bem. Conseguiremos que a nossa voz e o nosso modo de agir, na perspectiva do jovem que nos ouve e observa, sejam a expressão de algo durável, sólido, ancorado na vida? Ou serão descartáveis, como tudo o mais? Para um conceito se fixar, é preciso haver, no aprendiz, uma estrutura prévia que acolha a nova informação ou a nova maneira de ver a vida. Fazendo a pergunta radical: existe, na perspectiva da pós-modernidade, algum tipo de solidez? Ou tudo se desmancha no ar?

Fomos educados, pais perplexos que somos hoje, para ler o mistério do mundo nas entrelinhas da história, da vontade de Deus ou do inconsciente dos homens. O Cosmos era um grande quebra-cabeças a ser decifrado, onde poderíamos surpreender grandes e eternas verdades. Atrás delas muitos de nós percorreram os melhores anos da vida. É difícil entender um Universo desencantado, onde não valham leis abrangentes, onde apenas os fenômenos locais e consumíveis despertem interesse. Você poderá objetar que o mundo não melhorou com a nossa procura. Engano; vive-se, hoje, mais e melhor. Qualquer estatística o prova de maneira insofismável.

Para exemplificar, vejamos o caso de um jovem que interrompe os estudos, seduzido por ganhar dinheiro imediatamente. Será tão grande o prejuízo? Na mudança de valores que despenca sobre as nossas cabeças, apenas um estudo específico, aquele que se liga às tecnologias de ponta, é financeiramente compensatório. As outras possibilidades de se ter uma vida materialmente farta vêm da prática, da capacidade de se produzir ou comercializar um bem consumível. Você não precisa ser engenheiro para prosperar nos negócios.

Teimamos em exigir "cultura" para os filhos, mesmo sabendo que isso pouco lhes servirá na selva da sobrevivência. Queremos torná-los guardiões de um saber em vias de ser esquecido, mas que, segundo a nossa insistência em recusar o fim do sonho, um dia voltará ao seu esplendor. Os monges copistas da idade média também reproduziram artisticamente lotes de manuscritos antigos, muitas vezes sem saber do que tratavam. Será esse o destino que tentamos impor à nova geração?

Dentro desta barafunda que lhe escrevo, lembro-me de um artigo do Bruno Bettelhem, um psicanalista judeu que esteve nos campos de concentração. Ele constatou que alguns prisioneiros morriam muito depressa, antes mesmo que as suas condições de saúde deteriorassem. Deprimiam-se e abandonavam-se à morte. Outro grupo de pessoas, no entanto, resistia a condições tremendamente adversas, mantendo o ânimo e ajudando os outros. Observando o fenômeno mais de perto, reparou que os primeiros eram, em geral, capitalistas e comerciantes, bastante alheios a valores internos. Resistiam à morte os intelectuais e, mais ainda, os religiosos. Seu eixo psíquico, não dependendo de condições materiais, sobrevivia naturalmente. Você poderá objetar que não preparamos nossos filhos para campos de concentração. Também acho, mas creio que o relato do Bruno Bettelhem nos diz mais do que isso.

Vivemos, hoje, em um Cosmos dessacralizado. O sagrado, na feliz definição do Wisnik, na revista Artéria, é tudo aquilo que não pode ser descartado; isto inclui o religioso, mas não o torna proprietário absoluto da sacralidade do mundo. E, se nada é sagrado, nada merece sacrifício; tudo o que não oferece uma recompensa imediata e óbvia é "chato". Pois sacrifício quer dizer sacro facere, tornar um ato sagrado, fazer algo em nome de um fim significativo. Estudar é chato, ler um livro grosso é muito chato, ver um filme de arte é chatíssimo. Quando, em meio a uma dessas discussões modernas, você se orgulhou do repúdio de seu filho à idéia do aborto, percebeu que havia ali algo sagrado, um ponto que ficou marcado, certamente produto daquelas conversas a que nos referimos no início desta longa conversa (ou monólogo). Preocupa-me a manutenção desses valores no embate com a vida. Terão acolhimento na luta do pós-moderno cotidiano?

Uma última coisinha: você me disse que seu filho faz psicoterapia. Acho lindo. Sou psicólogo! Se os pais não tivessem esse tipo de iniciativa, como iria eu sustentar os meus filhos? Mas tenho, às vezes, dificuldade em lidar profissionalmente com adolescentes. Toda linha de psicoterapia parte de uma certa idéia de homem. Essa concepção está alicerçada em preceitos filosóficos, fazendo parte de uma visão global do mundo, em geral bem elaborada (ao menos deveria sê-lo). No consultório, na presença do jovem cliente, tenho a clara noção da distância que nos separa. A minha compulsão em compreender não é a dele; provavelmente ele não está interessado nisso. Posso vê-lo segundo um modelo teórico pré-estabelecido, que certamente está longe de traduzir a visão que o adolescente tem de si mesmo; com que direito reduzo-o ao meu esquema mental? Haverá alguma base comum, a partir da qual podemos nos entender? Ou participamos ali de uma farsa útil, porque apaziguadora? Fica a pergunta. Mais uma vez, não tenho resposta.

Em geral tenho vontade de fornecer ao cliente a base emocional e cognitiva que ele não teve. É uma tentativa condenada à frustração. Quando a vida fora do consultório não contribui para esse objetivo, a solidez emocional desejada dificilmente será reconstituída em uma ou duas horas por semana. Tenta-se trabalhar com fenômenos localizados, fragmentos da vida cotidiana. Muitas vezes ajuda. Em alguns casos é decisivo.

O problema da estrutura cognitiva, por sua vez, deveria estar afeito à escola. Você acompanha o aprendizado formal dos seus filhos? Compare-o ao que nós tivemos. Tínhamos mais matéria para estudar e menos psicólogas, psicopedagogas, orientadoras educacionais, frentes de estudo, reunião de pais (quantas vezes seus pais foram à sua escola?), etc. Será que tudo isso é necessário? Sem mais comentários.

Talvez tudo o que escrevi não tenha nada a ver com os assuntos que o preocupam, talvez tenha. Levantei muitos problemas e não solucionei nenhum. Mas vale a pena ocupar-se do sagrado; afinal, os filhos não são descartáveis como as fraldas que usam.

Luiz A. G. Cancello

Parceria: http://www.filhoscriados.com.br/mundomulher


   
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