Mundo Mulher

A CRIANÇA PÓS MODERNA por Carmem Bruder

14/03/2010

 

* Carmem Bruder

 

 

A pequena menina, de apenas quatro anos, vem à análise e se mostra inquieta e aborrecida. Nenhum brinquedo a atrai e todos os lápis de cor e canetinhas são jogados no chão. Perguntada sobre se gostaria de desenhar ou de pintar, ela diz que não sabe fazer “nadica” disso. Encorajada, acaba contando que pintou uma piscina na escola, mas a tia ficou brava e não deu estrelinha pra ela, só porque a água da piscina “esparramou tudo”.

 

A segunda metade do século passado assistiu a mudanças sem precedentes na forma do homem pensar, projetar e executar suas idéias. Ao lado da aceleração avassaladora nas tecnologias de informática e comunicação, das artes, de novos materiais e da genética, ocorreram mudanças paradigmáticas no modo de se pensar a sociedade e suas instituições. Querem muitos, historiadores, cientistas, que nossa civilização seja considerada como pertencente a um novo período da humanidade (o primeiro que já nasce nominado): a Pós-Modernidade.

 

Como tudo que é novo, este pensamento causa medo e desconforto,  tanto pelo que já vivenciamos, como pela velocidade com que passamos a sentir as mudanças no nosso dia a dia. Sem tempo para assimilar as novidades, que perecem antes mesmo de nos colocarmos a par elas, temos a nítida impressão daquele que só consegue chegar na festa quando ela está acabando. Tudo muda, e muda tão rápido, que, apesar de todos os conhecimentos acumulados, nos sentimos muito mais perdidos e desolados que nossos antepassados. Sabemos tanto, que temos dificuldades em fazer as coisas mais básicas, aquelas que vem sendo feitas ha séculos pelos que nos precederam. Dentre elas, a que chama mais a nossa atenção, é a arte milenar de criarmos nossos filhos.

 

Segundo um dos pioneiros no emprego do termo, o francês Jean-François Lyotard, “na condição pós-moderna os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito e não haveria mais "garantias", posto que mesmo a "ciência" já não poderia ser considerada como a fonte da verdade”. Diante disto, estamos aí, milhares de casais com seus filhos pequenos que devem ser educados para viverem na nova era, onde, nem a grande mãe nascida no Iluminismo, a ciência, é capaz de garantir muita coisa.

Mas há quem já vá mais longe do que Lyotard, o sociólogo polonê Zygmunt Bauman, que ajudou a popularizar o termo Pós-Modernidade, atualmente prefere usar a expressão "modernidade líquida", como expressão de uma realidade ambígua, multiforme, na qual, como na clássica expressão marxiana, tudo o que é sólido se desmancha no ar.

 

 Esse é o panorama que se descortina diante de todos nós, os “não garantidos” por coisa alguma, como Freud já dera conta de antever no século retrasado e que Lacan tão bem colocaria, no século passado, como cerne da psicanálise. Se naqueles tempos podíamos, talvez, nos iludir a respeito disso, a velocidade que se imprimiu ao viver, hoje não deixa mais dúvidas: sobre cada um de nossos atos pesa extremo risco porque o tempo para corrigir está ficando cada vez mais curto.

 

As crianças, que há cinquenta anos atrás vinham da roça para estudar na cidade entre os sete e os doze anos, assim que se juntasse alguns irmãos; que há trinta anos atrás começavam no primeiro ano para serem alfabetizadas com sete anos ou mais; hoje são matriculadas no máximo entre os dois a três anos de idade, um pouco mais que bebes. Precisamos pensar sobre as consequências disto.

 

Em idades tão tenras, o ser humano, cuja imaturidade é tão determinante que, até mesmo o cérebro só se encontra com algo em torno de trinta por cento de suas capacidades ativadas, a linguagem dentre elas, é um ser lúdico e preponderantamente afetivo. O que, trocado em miúdos, equivale a dizer que necessita de jogos, brinquedos, folguedos e divertimentos para, através da lógica que consegue decifrar, a afetiva, se inserir no mundo da linguagem e da realidade, esta que se desmancha no ar.

 

Voltando à nossa pequena menina, não há ainda para ela a possibilidade de coordenar seus movimentos finos para que a pintura da agua fique restrita às bordas da piscina. Seu cérebro não está pronto pra comandar sua mãozinha com essa precisão. Mas ela já percebe que a tia ficou triste e se sente culpada, que não ganhou estrelinha e se sente punida. Culpada de que? Punida por que?

 

Até que ponto podemos “adiantar” a educação das crianças? Aos quantos anos elas precisam estar alfabetizadas, serem bilinguês, se dedicarem a um esporte? É muito fácil que os anseios dos pais e das escolas se transformem em ansiedade nas crianças: basta que a “água esparrame”  e que os que educam (pais ou professores) não percebam que pintar a piscina nessa idade é tão somente uma atividade lúdica

 

Mandar filhos cedo para escola não é, por si só, motivo para nenhum pai sentir-se culpado ou negligente, até porque em tempos de famílias nucleares e pequenas, socializar-se no convívio com outras crianças pode ser muito bom. Mas, nessas idades a escola é auxiliar dos pais. Que ela não os substitui na função de amar e de educar todos sabemos, mas também, não deve desesperá-los com avaliações que comparem as crianças a “padrões” de aprendizagem pré estabelecidos ou até mesmo por cotejamento com outras crianças da mesma série.

 

Mesmo diante de todas as evoluções do pensamento e das técnicas, quando falamos em aprendizagem fazemos referência ao cérebro, um órgão de infinita complexidade, capacidade e beleza que, especialmente na infância (periodo compreendido entre os dezoito meses e os oito anos de idade) precisa de muito respeito ao tempo, à individualidade,  à imaginação, acrescidos de muito carinho e  compreensão para desenvolver a linguagem humana. E se o que se escreve são palavras, como alfabetizar antes que a criança domine a linguagem?

 

Os pais pos modernos acabaram colocados diante de um paradoxo: ao saberem tanto sobre tudo, se esquecem de que, mesmo sendo seus filhos, aos três, quatro, cinco, seis ou sete anos, uma criança ainda é apenas uma criança e que, se encher demais, a piscina derrama mesmo.

 

 

 

* Carmen Bruder é médica e psicanalista

cbruderfonseca@hotmail.com

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