Mundo Mulher

Crack escraviza cada vez mais cedo

07/04/2010 

Explode em Goiânia a quantidade de crianças que são atendidas por causa do vício na droga

Marcos não conheceu o pai biológico, mas herdou dele o mesmo destino. Aos 8 anos foi morar na rua. Aos 9, foi seduzido pelas drogas. Aos 10 foi dominado pelo crack, aos 11 internado numa clínica psiquiátrica e aos 13 ainda não voltou para casa. O corpo magro, de criança – 42 quilos –, contrasta com o relato duro de quem conhece todas as dores da rua. “Eu já fumei 200 reais de pedra num dia, tia.” Hoje está num abrigo. Lá conheceu outros meninos e meninas com histórias parecidas. Eles também tentam se libertar do domínio da droga cujo consumo explodiu entre crianças e adolescentes.

“O abuso de crack por crianças e adolescentes transformou-se numa epidemia. E o que é pior, uma epidemia completamente fora de controle”, diz o juiz da Infância e Juventude de Goiânia, Maurício Porfírio Filho. A explosão no consumo da droga nessa faixa etária reflete-se nos serviços de saúde. Na única unidade especializada na assistência a crianças e adolescentes dependentes químicos em Goiânia, a quantidade de atendimentos cresceu vertiginosamente nos últimos três anos.

“Em 2007, tínhamos 7 menores dependentes de crack em tratamento. Hoje são 53”, revela a diretora-geral do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Girassol, da Secretaria Municipal de Saúde, a psicóloga Stefânia Carla Gomes Londe. Estima-se que esse número, que já é assustador, seja três vezes maior, considerando o fato de que uma quantidade muito pequena de crianças e adolescentes que passa pelo Caps adere ao tratamento. Dados levantados pela secretaria a pedido do POPULAR revelam que, desde dezembro,19 menores, em média, são internados todos os meses para tratamento da dependência de crack no Hospital Neuropsiquiátrico Infantil de Goiânia, que recebe menores de 16 anos, toxicômanos, que necessitam de internação.

Cerca de metade dos meninos e meninas assistidos no Caps Girassol estão de passagem pela casa SOS Criança, ligada à Prefeitura. São crianças e adolescentes em situação de absoluta vulnerabilidade social. A maioria não tem mais vínculo com a família. “Eles chegam na unidade acabados, magros, porque passam dias e dias sem comer”, relata Stefânia. Segundo a psicóloga, o domínio do crack é um fenômeno que aconteceu muito rapidamente e obrigou os profissionais da saúde a adequarem.

“Houve um verdadeiro boom na oferta de crack, segundo relato dos próprios meninos. Muitos chegam na unidade com significativo comprometimento físico e mental porque já fazem uso da droga há um, dois anos, o que nos obriga a agir rápido”, afirma.

O tratamento da dependência voltado para a criança e o adolescente é bastante diferente da assistência prestada ao adulto. “O menino ou a menina, quando chegam ao Caps, estão em lua-de-mel com a droga. Eles não querem deixar o crack. Muitos são trazidos pelas famílias ou pelos serviços de assistência mas não ficam.” Os pacientes que aderem ao tratamento passam, no mínimo, dois anos sendo acompanhados. Marcos, o menino cuja história abre essa reportagem (os nomes dos personagens foram preservados), sempre sustentou o vício mendigando no semáforo. “Eu juntava 10 reais e comprova a droga. Fumava, voltava, pedia mais e comprava mais pedras”, relata, com embaraçosa naturalidade.

“A lombra (efeito prazeroso provocado pela droga) passa muito rápido, tia. Meia hora depois você já quer de novo.” A mãe, que mora em Aparecida de Goiânia, tem participado das reuniões de pais. Quer ter o filho de volta. Marcos, por sua vez, voltou a estudar no dia em que conversava com a reportagem.

·                         Mãe tem de pagar 15 reais que o filho roubou

Quando o filho de Sebastiana ia dormir, ela ficava ao seu lado. As pontas dos dedos queimados era a prova do seu tormento. “Como ele não tinha o cachimbo, fumava a pedra na lata e queimava os dedos todos”, relembra a dona de casa, de 46 anos, moradora do Setor São Judas Tadeu. No bairro, ficou envergonhada quando ela e o marido tiveram de ir a um armazém pagar 15 reais que o filho roubara da dona para comprar o crack. “Paguei e pedi desculpas.”

Por causa desse roubo, que o filho de 16 anos praticou na companhia de um maior, o garoto está em liberdade assistida por determinação da Justiça. “Quando ele já estava fumando crack há mais de ano, eu procurei o Conselho Tutelar e o Juizado para pedir ajuda. Mas disseram que só podiam fazer alguma coisa se ele tivesse cometido algum crime. Assim, foi preciso que meu filho se envolvesse num assalto para receber tratamento”, queixa-se a mãe, que acompanhava o adolescente no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Girassol.

A dona de casa faz um apelo. “Nossas praças, feiras, escolas estão repletas dessa droga. Os traficantes passam assoviando nas nossas portas oferecendo crack para os nossos filhos. Muitos pegam 20 pedras para vender em troca de uma para fumar”, diz, num relato assustador.

Especialista diz que ação tem de ser rápida

Deire Assis

Coordenador da Divisão de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, o médico Leo de Souza Machado chama a atenção para a importância de as famílias buscarem ajuda para os filhos ao primeiro sinal de dependência química. Segundo ele, assistidos antes que a droga cause grandes danos, o resultado do tratamento será mais satisfatório.

“Nem todo paciente necessitará ser tratado em um ambiente hospitalar. Aliás, é um absurdo ter de internar crianças e adolescentes em clínicas psiquiátricas”, frisa. “Atuar precocemente é a única forma de enfrentarmos o problema.”

O psiquiatra lembra que o combate ao avanço do crack em Goiânia necessita de uma ação envolvendo as forças da Segurança Pública. “A venda da droga, em qualquer parte da cidade, acontece, também, porque há uma inoperância muito grande nesse sentido.”

“Essa droga avassaladora tomou conta das cidades brasileiras”, diz o psiquiatra Lourival Belém, que desde 1983 atua no tratamento da toxicomania. Atuando no atendimento psiquiátrico de menores infratores no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), o médico conhece de perto os efeitos do envolvimento de crianças e adolescentes com o crack. “Outro dia recebemos um garoto que com apenas dois meses de uso era só osso em cima da cama.”

Perfil de crianças e adolescentes que são dependentes do crack mudou

Deire Assis

Por ser considerada uma droga barata, o crack era utilizado, na maior parte das vezes, por moradores de rua, crianças e adolescentes pobres. Hoje, porém, esse perfil mudou. No Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Girassol, cerca de metade dos pacientes são meninos e meninas de classe média.

“Aqui estão filhos de profissionais liberais diversos, como professores, médicos, psicólogos, enfermeiros”, relata a diretora da unidade, Stefânia Londe. “Muitos são meninos que estudaram a vida inteira em boas escolas, em colégios particulares”, completa.

Para a psicóloga, o que fez com que o avanço da droga alcançasse todo tipo de extrato social é o fato de o crack estar em todo lugar. “A oferta cresceu demais. A droga está na porta das escolas e até mesmo dentro dos colégios”, denuncia. Esse perfil de adolescente, afirma, é de meninos e meninas que vivem em famílias muito preocupadas em prover apenas materialmente os filhos, “esquecendo-se do afeto, do cuidado, da atenção.”

Muitos deles perdem o ano escolar por causa da dependência do crack. Foi assim com o filho mais velho de uma funcionária pública que o POPULAR encontrou no grupo de pais do Caps há duas semanas. A mãe é nutricionista e o pai, professor. A vida inteira, até os 14 anos, estudou nos melhores colégios da cidade. Nessa idade, por causa da dependência, o garoto foi reprovado dois anos consecutivos. Hoje, aos 16, luta para libertar-se do vício.

O tratamento no Caps já dura cerca de três meses, desde que a mãe, ao ler algumas mensagens do filho para os amigos na internet, encontrou termos estranhos que a levaram a pesquisar sobre o assunto. “Nas mensagens eles falavam o tempo todo da pedra. Era o crack”, relembra ela. “Eu fiquei muito assustada ao perceber que todos os amigos dele, filhos de famílias ricas, também usavam.”

O domínio da droga sobre o filho passou a ser tão grande,relata a funcionária pública, que vários objetos de casa foram desaparecendo. “Ele vendia tudo para sustentar o vício. Vendeu tênis, roupas, três bicicletas, um notebook e uma máquina fotográfica” enumera. O menino, que era obeso, emagreceu 30 quilos.

A mãe do garoto, hoje envolvida de corpo e alma com o problema, queixa-se da facilidade encontrada pelos jovens para adquirir a droga. “Eu não via nenhum traficante na escola, mas existia. Na internet, a coisa mais fácil do mundo é comprar pedras de crack.” Para ela, a droga está fazendo com que inúmeras famílias se desmoronem. “Não adianta dar só escola e computador. É preciso dar moral, valor, amor”, declara.

Eu não via nenhum traficante na escola, mas existia. Na internet, a coisa mais fácil do mundo é comprar pedras de crack.”
Mãe de usuário de crack

Caps oferece tratamento individual

Deire Assis

O Centro de Atenção Psicossocial Girassol, especializado no tratamento de crianças e adolescentes dependentes químicos, adota um modelo de assistência que substitui a internação. A diretora da unidade, Stefânia Carla Gomes Londe, explica que o Caps atende à demanda espontânea por tratamento e o agendamento pode ser feito por telefone. “Não há fila de espera”, frisa. Os meninos e meninas também são encaminhados ao Caps pelo Juizado da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares e escolas.

Os dependentes de crack são assistidos por uma equipe composta por psiquiatras, clínicos, psicólogos, assistentes sociais, educadores físicos, terapeutas e enfermeiros, entre outros. Cada paciente recebe um tratamento específico. Em média, eles se dirigem ao Caps de três a quatro vezes por semana. A família da criança e do adolescente também é tratada por meio dos grupos de família, que se reúnem alguns dias da semana.

Onde buscar ajuda

Dependentes têm tratamento pelo SUS

Deire Assis

A porta de entrada é o Pronto-Socorro Psiquiátrico Wassili Chuc, onde os dependentes podem ficar até 72 horas, até que seja disponibilizada uma vaga de internação no Hospital Neuropsiquiátrico Infantil, conveniado com o Sistema Único de Saúde (SUS). O contato para agendamento de consultas no Caps Girassol é o 62-3524-2419. A unidade funciona na Rua R-5,
no Setor Oeste.

Fonte : O Popular / Deire Assis

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