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Tristeza como luxo

Tristeza como luxo

02/01/2014

Minhas leituras de férias têm me proporcionado momentos de dolorosa clarividência. Uma delas é um dos episódios da série do Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Logo no início, Arthur, que estava preso no planeta Terra pré-histórico, sozinho, passa a ter companhia – Ford. Acontece que Ford era chato. Mas como Arthur tinha ficado quatro anos isolado, já quase enlouquecendo (na verdade, já tinha até começado a conversar com árvores), não ligou para esse detalhe. Sentir-se incomodado pela chatura de seu companheiro era para ele, diante das circunstâncias, um luxo que não se podia dar.

Outro luxo que não se podem dar é o de perder a razão. Mas atentem: os animais, e não o homem. László Mérõ, em seu divertido livro sobre teoria dos jogos nos raciocínios morais, cita um experimento em que uma nota de dólar é leiloada. Só que tem um detalhe capcioso. Quem ganhar, paga e leva o dólar e, quem ficar em segundo, paga o que ofereceu ao dono do dólar, sem levar nada em troca. Ou seja, se somente uma pessoa oferecer, digamos, 10 centavos, e ninguém mais, esta pessoa tem um lucro de 90 centavos e o dono do dólar prejuízo de igual valor. Mas não é isso que acontece na maioria das vezes. As pessoas vão fazendo lances e mais lances, ao ponto de oferecerem mais do que um dólar, já que não querem ficar em segundo. Com isso, seu prejuízo fica maior. Se raciocinassem, parariam bem antes. Transferindo experimento com filosofia semelhante a alguns animais, estes nunca caem na armadilha de “oferecer” mais do que vale o “prêmio”, já que não podem desperdiçar energia numa causa perdida. São mais racionais do que os homens.

Mas o mais impressionante de todos os luxos é o da tristeza. E agora não se trata de livro, mas filme, só que um filme diferente, uma peça filmada, baseada no livro Será Isso um Homem?, de autoria do italiano Primo Levi. Um monólogo maravilhosamente interpretado pelo ator sul-africano Antony Sher. Trata-se do relato da experiência vivida por Levi no campo de extermínio de Auschwitz, durante o último ano da Segunda Guerra Mundial.

São 90 minutos de angústia, enquanto acompanhamos a inacreditável narrativa de Antony/Primo. As condições a que são reduzidos os prisioneiros, o que precisam fazer para manter-se vivos (mortos-vivos, zumbis), a crueldade e a indiferença dos soldados nazistas, tudo faz asRecordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, parecer historinha infantil. Mas só conseguimos apreender a plenitude do absurdo quando ele conta o pequeno momento de paz que teve. Por “paz”, entenda-se alguns minutos em que o deixaram descansar, depois já de algumas semanas ali. Somente então ele foi capaz de sentir tristeza. “Uma tristeza que somente homens livres são capazes de ter.” Estraguei seu café da manhã? Pois é.

Flávio Paranhos é médico e escritor - flavioparanhos@uol.com.br

Publicado em O Popular

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