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O que é justiça? Flávio Paranhos

O que é justiça? Flávio Paranhos

18/09/2013

Já na primeira aula de bioética para calouros de Medicina, escrevo grande no quadro “Eu não presto”, e peço pra turma ler alto. Meu objetivo é lembrar-lhes de que nada há de mais vazio do que bater no peito e dizer que agiu de acordo com sua consciência. Quem é o juiz de minha consciência? Eu mesmo. E eu rumino a culpa até transformá-la em perdão. Abundam evidências científicas a respeito, assim como exemplos maravilhosos nas artes (Crimes e pecados, de Woody Allen, eO enfermeiro, de Machado de Assis, pra ficar só com dois).

 

O próximo passo é apresentar à garotada, recém saída do vestibular e louca pra dissecar cadáveres, os dois primeiros livros da República de Platão. Do primeiro, retiramos a iluminada e dolorosa verdade acerca do que é justiça, pela boca de Trasímaco: “Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte. (...) Só há um modelo de justiça em todos os Estados – o que convém aos poderes constituídos. Ora, estes é que detêm a força. De onde resulta que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte.”

 

Do segundo, a estorinha do anel de Giges (que serviu de inspiração à lenda germânica usada por Wagner e sua ópera Os Nibelungos, assim como a Tolkien e seu Senhor dos Anéis), contada por Gláucon para dar suporte a sua própria teoria: ninguém é justo por vontade, mas é coagido. Deve-se parecer justo, granjeando para si esta fama, mesmo ao cometer as maiores injustiças, “e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e se for denunciado algum de seus crimes, que exerça a violência nos casos em que ela for necessária, por meio de sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado.”

 

No momento em que escrevo esse artigo, o placar no STF para o julgamento do mensalão está empatado em 5 a 5, falta um voto que, tudo indica, será pró-mensaleiros. Mas ainda que não seja, e os mensaleiros não escapem, os cinco votos dados a eles são ilustrativos do que “dizem” Trasímaco e Gláucon. O poder executivo, ocupado pelo partido mais interessado em que os mensaleiros escapem, em cumplicidade com o poder judiciário, executando a justiça como ela é – a conveniência do mais forte.

 

Não estou dizendo que há uma ação deliberada ou uma cumplicidade consciente. Pode haver ou não. Pode ser subconsciente (gratidão, por exemplo). Não é isso que importa. O que importa é que estão sendo desprezadas evidências abundantes da ação dos acusados em favor de um julgamento de “consciência” que lança mão de labirintos de regras internas para se justificar.

 

E isso é exatamente o que pretendo mostrar aos meus alunos. Que eles sempre desconfiem de suas consciências. O juiz da ação do médico é a evidência científica. E o juiz do juiz deveria ser a evidência factual.

Flávio Paranhos é médico doutor (UFMG) e research fellow (Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFG) e visiting fellow (Tufts) em Filosofia, professor da PUC-GO

Publicado em O Popular

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