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A trufa branca vale mais do que você - Flávio Paranhos

A trufa branca vale mais do que você - Flávio Paranhos

22/01/2014

“Até sua voz tinha mudado. De uma meiga contralto pra um barítono gripado”

Num primeiro momento, não acreditei. Aquela arma apontada pra minha cabeça não combinava com o decote ousado e o sorriso angelical. Ou seria que o sorriso não combinava com o decote? Não importa. Uma arma?

– Sabia que Tchecov desaconselha a colocar uma arma no cenário se não será aproveitada na peça?

– Que cenário? Que peça? E eu pretendo usar.

– Não acredito.

Ou acredito? Acabáramos de sair d’O Rapto do Serralho, no Municipal. Tive enorme dificuldade de prestar atenção às legendas, por conta de seu decote. Ela, impassível, esbanjando seu conhecimento de alemão quase tanto quanto seus recém-turbinados seios.

– Não acha que as em italiano são melhores?

– Hein? Não me testa a paciência. Diz logo onde está.

Nossa! Até sua voz tinha mudado. De uma meiga contralto pra um barítono gripado. Olhei bem dentro de seus olhos. Logo desviei. Ela é dessas que sempre ganham no jogo de quem pisca primeiro.

– Vou contar até três – ela armou o gatilho do revólver pra não deixar dúvidas do que pretendia fazer depois do três.

– Escuta, não precisa nada disso, eu pego pra você, benzinho.

– Benzinho é o cacete. Pega logo. E ai de você se tentar alguma gracinha.

– Mas...

– Um...

– Tá bom, já vai, já vai.

Corri até a cozinha, ela colada atrás de mim. Eu tremia demais, deixei cair as latinhas das trufas negras.

– Pode guardar essas pra você. Eu quero... Você sabe muito bem o que eu quero.

– Amor...

– Dois...

– Mas essas vieram diretamente do Perigord... Tá bom, tá bom!

Finalmente consegui vencer o nervosismo e achar a latinha com a trufa branca. Abri a lata, o isopor, o papel especial. Lá estava ela, imponente, atrevida, quase dizendo, “me coma, se for capaz”. Uma lágrima escorreu de meu olho esquerdo denunciando minha hesitação.

– Três!

Joguei a lata pra cima, ela se distraiu. Aproveitei e enfiei uma faca de cozinha dessas rombas, apenas serrilhadas. Em situações normais teria sido difícil penetrar o abdome, mas aquela não era uma. Em um arroubo de crueldade vingativa, rodei a faca dentro de sua barriga. Sim, eu estava irreconhecível. Mas essa trufa veio direto de Alba, na Itália. Vale mais do que ela. Vale mais do que você.

 

Publicado em O Popular

Flávio Paranhos é médico e escritor

 

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