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"Porque baleia não é peixe" por Flávio Paranhos.

"Porque baleia não é peixe"   por Flávio Paranhos

29/05/2011


 Diga rápido, como faria no dia-a-dia, a frase: “Cadê os livros que eu te emprestei?” Mastigo e engulo essa página de revista se você não engoliu o “s” de “livros”. /Cadê us livro que timprestei?/, deve ser mais ou menos assim que você falou. Por que fez isso, se sabe muito bem (afinal, você é um leitor de uma revista de filosofia) que seria mais adequado dizer “Onde estão os livros que lhe emprestei?”? Porque falar assim é pedante e pouco prático, você se defenderá.


E estará certo. A distância entre a linguagem falada e a escrita é não raramente grande. A falada é como uma linha reta, procura a menor distância entre dois pontos. A escrita paga o preço da sinuosidade em favor da elegância. Pela falada, não existe mais o futuro do indicativo da maioria dos verbos. Roubando dos franceses, usamos hoje somente o “futuro próximo” no lugar do “futuro simples”. Ninguém fala mais “eu comerei isso”, todos falamos “eu vou comer isso”. Nada de “você fará”, mas, sim, “você vai fazer”. Nem “nós viajaremos”, mas “nós vamos viajar”. E por quê? Porque dessa forma só precisamos saber a conjugação do presente do indicativo do verbo ir, pois o outro vem sempre no infinitivo impessoal.

 
Muitos cariocas, sulistas e nordestinos ainda usam o “tu”. Errado. Tu vai, tu foi... Pernambucanos ainda tentam esboçar uma conjugação, mas acaba saindo errado também (“tu foste” vira “tu fosse” “pegaste?”, “pegasse?”). Nortistas parecem ser os únicos que ainda usam o tu corretamente. Claro, há exceções nos dois lados. Sulistas, cariocas e nordestinos que conjugam corretamente, e nortistas, incorretamente. Para o resto do país, a segunda pessoa inexiste. Não demora muito e espirra fora da gramática, tornando oficial o que já é corrente.


Isso mesmo, a língua é dinâmica. E, sim, falamos errado, todos, em diversos momentos. Eu arriscaria apostar que na maioria deles. Todos nós, os que sabemos muita gramática, pouca ou nenhuma. Portanto, não é coisa alguma de excepcional o conteúdo do livro agora polemicamente famoso, Por uma vida melhor, de autoria de Heloísa Ramos. Mas antes que a editora da revista pense que fiquei doido ou me esqueci de que fui escalado para argumentar contra, e não a favor, aqui vai meu ponto: a questão não é o que diz a autora, mas onde ela diz.


Um livro que pretenda ensinar Língua Portuguesa não deve dizer ao aluno que está tudo bem ele falar “os livro”. Pelo mesmo motivo que um livro de Biologia não deve dizer ao aluno que está tudo bem se ele sair falando que baleia é peixe. Se alguém disser, “Quando for comprar os legumes, não se esqueça do tomate.”, far-se-á entender tanto quanto quem disser “os livro”, referindo-se a mais de um. Mas o professor de Biologia deve ensinar ao aluno que, a despeito de evidências contundentes em contrário, baleia não é peixe, nem tomate é legume.


Por outro lado, os professores de Português e Biologia, assim como todos os demais, devem ensinar em sala de aula a tolerância respeitosa com o erro alheio. Qualquer erro, não só o de Português.


Mas “os livro” é erro? É. Não faz o menor sentido falar em “norma popular”. Pois o que caracteriza o “popular” é justamente a ausência de norma. É proibido proibir. Norma só tem uma. E ela diz que deve haver concordância, que baleia é mamífero e que tomate é fruta.

Flávio Paranhos.

Médico (UFG) Doutor (UFMG) Research Fellow (Harvard) em Oftalmologia. Mestre (UFG), Visiting Fellow (Tufts) e Doutorando (UFSCar) em Filosofia. Professor de Bioética da Graduação em Medicina e do Mestrado em Ciências Ambientais e da Saúde da PUC-GO. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do HC-UFG.

Publicado em O Popular

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